Affonso Romano de Sant’Anna
Renato Lessa, que dirige a Biblioteca Nacional, me pediu uma frase para colocar num dos tapumes que cercam a instituição enquanto ela é retaurada. Ocorrem-me várias. Mandei-lhe essa: Ler é apropriar-se do mundo.
Mas outras são possiveis. E releio o que tenho escrito aqui e ali.
Tudo é leitura.Tudo é decifração. Ou não. Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente.
Não é só quem lê um livro, que lê. Um paisagista lê a vida de maneira florida. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural.
Tudo é narração. Até o quadro “Branco sobre Branco”de Malevitch conta uma estória.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto tambem lê o mundo. As vezes, sabiamente.
Ler é uma forma de escrever com a mão alheia.
Insistir na leitura (apenas) como um prazer é prometer um parque de diversões onde o leitor encontrará às vezes uma usina de trabalho.
Leitura é uma tecnologia.
Você já leu todos esses livros? Essa é a pergunta que faz tanto o operário quanto o jornalista que vem à minha casa. A resposta pode ser variada:
-Li esses e muitos que não estão aqui.
-Há livros que são para consulta eventual, outros que aguardam sua hora, outros que não lerei, alguns que nem lembro se li.
-Há outros que comprei de novo, pois não me lembrava de tê-los.
É interessante a observacão que encontro no livro de Caillé e Rey, de que “de uma certa maneira Sherazade inaugurou a ideia do tratamento da loucura através dos contos”.
O combate ao crime e à degradação moral pode ser encaminhado através do livro. Para cada bala perdida, uma biblioteca implantada.
Nossa cultura conheceu a passagem do “regime de escassez”ao “regime de abundância” ou, talvez, de excesso de informação. Diz-se que ao tempo de Gutemberg havia em toda Europa cerca de 9 mil letrados.
Carecemos de uma história alheia para esticar a nossa.
Amar no amor alheio.
Amar com o amor alheio.
Amar pela fala alheia.
A realidade não pode viver sem a ficção.
Estive com Mr.Cullman várias vezes. Ele e sua mulher Dorothy são benfeitores da New York Public Library. Discretamente, uma assessora da NYPL me revela que Cullman já deve ter dado US$ 20 milhões para aquela instituicão.
Literatura é um elemento mediador e o “eu”do escritor é um “eu”de utilidade pública. A literatura faz acontecer.
Além do analfabetismo convencional há o analfabetismo tecnológico, que faz com que estejamos reaprendendo diariamente novas linguagens.
Paixão de ler. Ler a paixão.
Como ler a paixão se a paixão é que nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes sofrem uim desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia.
Transcrito de Correio Braziliense, 13.04.2014
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