Miscelâneas do Eu

Expressar as ideais, registrar os pensamentos, sonhos, devaneios num pequeno e simplório blog desta escritora amadora que vos fala são as formas que encontrei para registrar a existência neste mundo.

Não cabe a mim julgar certo ou errado e sim, escrever o que sinto sobre o que me cerca.

A única coisa que não abro mão é do amor pelos seres humanos e incompreensão diante da capacidade de alguns serem cruéis com sua própria espécie.

Nana Pimentel

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terça-feira, 29 de abril de 2014

Um leitor lê a leitura

Affonso Romano de Sant’Anna
            Renato Lessa, que dirige a Biblioteca Nacional, me pediu uma frase  para colocar num dos tapumes que cercam a instituição enquanto ela é retaurada. Ocorrem-me várias. Mandei-lhe essa:  Ler é apropriar-se do mundo.
            Mas outras são possiveis. E releio o que tenho escrito aqui e ali.
            Tudo é leitura.Tudo é decifração. Ou não. Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente.
            Não é só quem  lê um livro, que lê. Um  paisagista lê a vida de maneira florida. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural.
            Tudo é narração. Até  o quadro “Branco sobre Branco”de Malevitch  conta  uma estória.
         
            A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto tambem lê o mundo. As vezes, sabiamente.
            Ler é uma forma de escrever com a mão alheia.
            Insistir na leitura (apenas) como um prazer é prometer um parque de diversões onde o leitor encontrará às vezes uma usina de trabalho.
            Leitura é uma  tecnologia. 
            Você já leu todos esses livros?  Essa é a  pergunta que faz tanto o  operário quanto o  jornalista que vem à minha casa. A resposta pode ser variada:
-Li esses e muitos que não estão  aqui.
-Há livros que são para consulta eventual, outros que aguardam sua hora, outros que não lerei, alguns que nem lembro se li.
-Há outros que comprei de novo, pois não me lembrava de tê-los.
            É interessante a observacão  que encontro no livro de Caillé e Rey, de que  “de uma certa maneira Sherazade inaugurou a ideia do tratamento da loucura através dos contos”.
            O combate ao crime e à degradação moral pode ser encaminhado através do livro. Para cada bala perdida, uma biblioteca implantada.
            Nossa cultura conheceu a passagem do “regime de escassez”ao “regime de abundância” ou, talvez, de excesso de informação. Diz-se que ao tempo de Gutemberg havia em toda Europa cerca de 9 mil letrados.
            Carecemos de uma história alheia para esticar a nossa.
            Amar no amor alheio.
            Amar com o amor alheio.
            Amar pela  fala alheia.
            A realidade não pode viver sem a ficção.
            Estive com Mr.Cullman várias vezes. Ele e sua mulher Dorothy são benfeitores da New York Public Library. Discretamente, uma assessora da NYPL me revela que Cullman já deve ter dado US$ 20 milhões para aquela instituicão.
            Literatura é um elemento mediador e o “eu”do escritor é um “eu”de utilidade pública. A literatura faz acontecer.
            Além do analfabetismo convencional  há o analfabetismo tecnológico, que faz com que estejamos reaprendendo diariamente novas linguagens.
            Paixão de ler. Ler a paixão.
            Como ler a paixão se a paixão é que nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes sofrem uim desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia.
Transcrito de Correio Braziliense, 13.04.2014

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