A maioria de nós ainda anda presa à idéia de que saber ler é estar alfabetizado para juntar letras a sons, oralizando o escrito. No entanto, podemos ler uma frase inteira na própria língua materna e não entender o seu sentido. No primeiro caso, é costumamos dizer que deixamos de ser analfabetos; no segundo, atestamos que nos mantemos analfabetos funcionais. Como diz o poeta Mário Quintana, “analfabeta não é a pessoa que não sabe ler, mas a que sabendo, NÃO lê.”
E que diferença faz? Toda. Ler, na verdade, é interpretar não só a palavra, mas o mundo, como o demonstrou Paulo Freire, porque tudo é texto à nossa volta e em nós, todas as práticas de vida, todas as linguagens, do verbo ao gesto, do corpo à imagem: tudo precisa fazer sentido e somos responsáveis pelos que damos às coisas e aos outros. E se lemos pouco ou nada, temos um vocabulário estreito, o que torna nosso pensamento estreito, e traz distorções graves à vida social e pessoal. Quantos mal-entendidos não são gerados de nossos equívocos de interpretação – interação nossa com a linguagem, onde penetramos o mundo surdo das palavras, como disse em verso, Carlos Drummond de Andrade.
Mais que isto, o filósofo austríaco L. Wittgenstein disse que o tamanho do mundo de cada um corresponde ao tamanho da sua linguagem. Quem não pode expressar um sentimento, um pensamento, a bem da verdade, não o possui, porque preso dentro de nós eles não nos permitem estabelecer o laço que nos torna humanos, o laço da alteridade, o encontro com o outro – personagem de ficção ou de carne e osso – no qual nossa vida se espelha e se reflete... Quanta coisa acontece enquanto lemos e nem o percebemos! Porque lemos também tudo e antes mesmo da escrita. Já vimos uma criança suja de lama da água da chuva, entrar em casa pé ante pé, esgueirando-se para o chuveiro, antes que a mãe o veja? Ele “lê“ a situação com sua experiência e a consciência de que é capaz. Lemos mesmo quando analfabetos e ágrafos. Lemos o tempo para nos vestir, lemos a estrada para conduzir.
Mas estar no mundo contemporâneo exige muita leitura, porque mesmo a esperteza, por falta de leitura, acaba caindo no laço. Ler implica muitas coisas: se ultrapassamos pelo acostamento, se construímos casa em lugares de risco, se jogamos lixo fora das caixas coletoras, não somos leitores mesmo! Se autorizamos licenças indevidas, se vendemos produtos com data vencida, se queremos “levar vantagem em tudo”, mais que corruptos e corruptores, não somos leitores. A leitura é uma exigência da qualidade de vida, quer dizer, de convívio, de trocas condicionadas à retribuição de direitos e deveres comuns. A leitura é condição de cidadania.
Mas não aprendemos a ser leitores apenas nos livros escolares, e às vezes, nem neles. A condição de leitor é um longo e permanente exercício que começa na sala de aula com uma série de informações que nos deveriam ajudar a estar no mundo e avança para um mundo que não vivenciamos, um mundo de possibilidades, que se oferece pela ficção, que convoca os sentimentos e a inteligência, que nos comove e descortina horizontes, para muito que possamos ser no mundo; ser pessoas com um nome verdadeiramente próprio. A literatura, o cinema, o teatro, a música rasgam nossos horizontes e mesmo sem nunca viajarmos, podemos percorrer tempos e espaços do passado e mesmo do futuro. E isto nada disto tem sua origem na mídia que aliena e induz ao consumismo como status social. Ganhamos sabedoria.
Depois do desastre ecológico de 2011, a população da serra ficou muito vulnerável, pois, a leitura das chuvas desde então, é interpretada como ameaça. Se tivéssemos lido no Guarani, de José de Alencar, a enchente do Paquequer, aqui em nosso Estado, teríamos recordado a sensação e a dimensão das forças da natureza, quando elas se desatam. As autoridades discursaram, prometeram publicamente muitas realizações e o resultado é pífio: estamos lendo o vazio, a irresponsabilidade, como lemos as atitudes de oportunistas, saqueadores que abusaram da dor alheia naquele momento.
Contudo, havia gente de carne e osso que sobreviveu ao cataclismo, que perdeu tudo e ficou com a memória das pessoas queridas, das coisas vividas, de uma foto amassada aqui, de uma blusa rasgada ali, de um quadro que estava na parede, da bicicleta retorcida na margem da avalanche: ficou com suas histórias. Falar delas pode ajudar a tratar do sofrimento, recuperar seu valor, garantir uma reflexão que ajude certas coisas a não se repetirem. Pouca gente recebeu cuidados desta ordem, pois a urgência era enterrar os mortos, alojar desabrigados e esquecê-los.
Queremos lembrar para curar-nos de tanta dor e, a leitura de literatura pode ajudar muito; lendo nos identificamos, liberamos sentimentos, achamos as expressões, recordamos nossas próprias histórias; podemos inclusive, escrevê-las, guardá-las, não para ocultá-las, como disse Antonio Cícero, mas para colocá-las à mostra, exibi-las, para que não se percam.
Foi o que procurou fazer o projeto Serra Viva da Secretaria de Cultura do Estado, através da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio que, com 60 jovens da região, em processo de formação de leitores, visitou as famílias de Córrego D’Antas, de Vieira e do Vale do Cuiabá, no eixo mais catastrófico das águas, e conversou, gravou histórias, fez fotos e vídeos, recuperou a memória dos antepassados, sua própria vida, exorcizou aquela noite e começou a ganhar voz para ter vez na demanda por uma recuperação física e material de suas áreas. Demandar responsabilidade cívica.
Não foi possível contar com um apoio mínimo que fosse para os meninos dos três municípios do projeto, terem pelo menos passe livre com a camiseta do projeto para circular; nem com prefeituras que, mesmo dispondo de renúncia de capital de outras fontes, se dispusessem a garantir meia dúzia de micro-gravadores; nem de empresários que colaborassem para se reunir e preparar os meninos em suas dependências; nem ajuda para erguer um chalé da memória nestas regiões onde muita verba desapareceu em outros fins. Para realizar a festa de balanço do queria ser um piloto desta ação de cultura e memória, foi preciso contar com o Sesc e com a PUC-Rio. Por lá, às dez da manhã deste sábado, uma exposição e depoimentos de quem viveu o projeto e conta em poder prosseguir com as leituras de casa em casa, nas comunidades, que espera bibliotecas e centros de memória e não apenas shoppings. É pela leitura, (com livros e leitores), que os homens se tornam humanos, como profetizava Lobato.
E que diferença faz? Toda. Ler, na verdade, é interpretar não só a palavra, mas o mundo, como o demonstrou Paulo Freire, porque tudo é texto à nossa volta e em nós, todas as práticas de vida, todas as linguagens, do verbo ao gesto, do corpo à imagem: tudo precisa fazer sentido e somos responsáveis pelos que damos às coisas e aos outros. E se lemos pouco ou nada, temos um vocabulário estreito, o que torna nosso pensamento estreito, e traz distorções graves à vida social e pessoal. Quantos mal-entendidos não são gerados de nossos equívocos de interpretação – interação nossa com a linguagem, onde penetramos o mundo surdo das palavras, como disse em verso, Carlos Drummond de Andrade.
Mais que isto, o filósofo austríaco L. Wittgenstein disse que o tamanho do mundo de cada um corresponde ao tamanho da sua linguagem. Quem não pode expressar um sentimento, um pensamento, a bem da verdade, não o possui, porque preso dentro de nós eles não nos permitem estabelecer o laço que nos torna humanos, o laço da alteridade, o encontro com o outro – personagem de ficção ou de carne e osso – no qual nossa vida se espelha e se reflete... Quanta coisa acontece enquanto lemos e nem o percebemos! Porque lemos também tudo e antes mesmo da escrita. Já vimos uma criança suja de lama da água da chuva, entrar em casa pé ante pé, esgueirando-se para o chuveiro, antes que a mãe o veja? Ele “lê“ a situação com sua experiência e a consciência de que é capaz. Lemos mesmo quando analfabetos e ágrafos. Lemos o tempo para nos vestir, lemos a estrada para conduzir.
Mas estar no mundo contemporâneo exige muita leitura, porque mesmo a esperteza, por falta de leitura, acaba caindo no laço. Ler implica muitas coisas: se ultrapassamos pelo acostamento, se construímos casa em lugares de risco, se jogamos lixo fora das caixas coletoras, não somos leitores mesmo! Se autorizamos licenças indevidas, se vendemos produtos com data vencida, se queremos “levar vantagem em tudo”, mais que corruptos e corruptores, não somos leitores. A leitura é uma exigência da qualidade de vida, quer dizer, de convívio, de trocas condicionadas à retribuição de direitos e deveres comuns. A leitura é condição de cidadania.
Mas não aprendemos a ser leitores apenas nos livros escolares, e às vezes, nem neles. A condição de leitor é um longo e permanente exercício que começa na sala de aula com uma série de informações que nos deveriam ajudar a estar no mundo e avança para um mundo que não vivenciamos, um mundo de possibilidades, que se oferece pela ficção, que convoca os sentimentos e a inteligência, que nos comove e descortina horizontes, para muito que possamos ser no mundo; ser pessoas com um nome verdadeiramente próprio. A literatura, o cinema, o teatro, a música rasgam nossos horizontes e mesmo sem nunca viajarmos, podemos percorrer tempos e espaços do passado e mesmo do futuro. E isto nada disto tem sua origem na mídia que aliena e induz ao consumismo como status social. Ganhamos sabedoria.
Depois do desastre ecológico de 2011, a população da serra ficou muito vulnerável, pois, a leitura das chuvas desde então, é interpretada como ameaça. Se tivéssemos lido no Guarani, de José de Alencar, a enchente do Paquequer, aqui em nosso Estado, teríamos recordado a sensação e a dimensão das forças da natureza, quando elas se desatam. As autoridades discursaram, prometeram publicamente muitas realizações e o resultado é pífio: estamos lendo o vazio, a irresponsabilidade, como lemos as atitudes de oportunistas, saqueadores que abusaram da dor alheia naquele momento.
Contudo, havia gente de carne e osso que sobreviveu ao cataclismo, que perdeu tudo e ficou com a memória das pessoas queridas, das coisas vividas, de uma foto amassada aqui, de uma blusa rasgada ali, de um quadro que estava na parede, da bicicleta retorcida na margem da avalanche: ficou com suas histórias. Falar delas pode ajudar a tratar do sofrimento, recuperar seu valor, garantir uma reflexão que ajude certas coisas a não se repetirem. Pouca gente recebeu cuidados desta ordem, pois a urgência era enterrar os mortos, alojar desabrigados e esquecê-los.
Queremos lembrar para curar-nos de tanta dor e, a leitura de literatura pode ajudar muito; lendo nos identificamos, liberamos sentimentos, achamos as expressões, recordamos nossas próprias histórias; podemos inclusive, escrevê-las, guardá-las, não para ocultá-las, como disse Antonio Cícero, mas para colocá-las à mostra, exibi-las, para que não se percam.
Foi o que procurou fazer o projeto Serra Viva da Secretaria de Cultura do Estado, através da Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio que, com 60 jovens da região, em processo de formação de leitores, visitou as famílias de Córrego D’Antas, de Vieira e do Vale do Cuiabá, no eixo mais catastrófico das águas, e conversou, gravou histórias, fez fotos e vídeos, recuperou a memória dos antepassados, sua própria vida, exorcizou aquela noite e começou a ganhar voz para ter vez na demanda por uma recuperação física e material de suas áreas. Demandar responsabilidade cívica.
Não foi possível contar com um apoio mínimo que fosse para os meninos dos três municípios do projeto, terem pelo menos passe livre com a camiseta do projeto para circular; nem com prefeituras que, mesmo dispondo de renúncia de capital de outras fontes, se dispusessem a garantir meia dúzia de micro-gravadores; nem de empresários que colaborassem para se reunir e preparar os meninos em suas dependências; nem ajuda para erguer um chalé da memória nestas regiões onde muita verba desapareceu em outros fins. Para realizar a festa de balanço do queria ser um piloto desta ação de cultura e memória, foi preciso contar com o Sesc e com a PUC-Rio. Por lá, às dez da manhã deste sábado, uma exposição e depoimentos de quem viveu o projeto e conta em poder prosseguir com as leituras de casa em casa, nas comunidades, que espera bibliotecas e centros de memória e não apenas shoppings. É pela leitura, (com livros e leitores), que os homens se tornam humanos, como profetizava Lobato.
Eliana Yunes
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