Miscelâneas do Eu

Expressar as ideais, registrar os pensamentos, sonhos, devaneios num pequeno e simplório blog desta escritora amadora que vos fala são as formas que encontrei para registrar a existência neste mundo.

Não cabe a mim julgar certo ou errado e sim, escrever o que sinto sobre o que me cerca.

A única coisa que não abro mão é do amor pelos seres humanos e incompreensão diante da capacidade de alguns serem cruéis com sua própria espécie.

Nana Pimentel

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terça-feira, 30 de agosto de 2016

A DESCOBERTA DO MUNDO


O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar a delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.
Quando criança, e depois de adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em aprender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesma, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então. Seria a minha ignorância um modo sonso e inconsciente de manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube de coisas que eu nem mesmo sei que sei.
As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à minha ignorância.
Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
Até que um dia, já passados os treze anos, como só então eu me sentisse madura para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e que fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia antes fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina de esclarecer o mistério da vida. Só que ela também era uma menina e não soube falar de um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas para quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca ia me casar.
Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros.
Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como a mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde. Tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me conciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de contar como era o amor. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino. Pois juro que a vida é bonita. ( Clarice Lispector )




VOCABULÁRIO:
PRECOCE: PREMATURO / TURVAR: TOLDAR, ESCURECER / INTACTO: INTEIRO / LUCIDEZ: CLAREZA, PERSPICÁCIA / PUDOR: VERGONHA /SONSO:FINGIDO, DISSIMULADO / PRECEDER: REVELAR-SE ANTES DE...

1- Por que o texto tem o título “A descoberta do mundo”?
2- A que a narradora se refere quando menciona “os fatos da vida”?
3- Como se sentia a narradora em relação às colegas? E como se comportava diante delas?
4- Qual o caminho imediato que encontrou para suprir sua ignorância?
5- Como a narradora se descreve psicologicamente e fisicamente?
6- A narradora se diz atrasada em relação a certos fatos da vida e se diz precoce em relação a outros. Em que consistia sua precocidade?
7- Como ela explica o fato de continuar, mesmo adulta, ainda atrasada em muitos terrenos?
8- Como a narradora se sentiu quando ouviu as explicações dadas pela colega? Por quê?
9- Por que a narradora demorou tanto para reunir coragem e fazer a pergunta à amiga?
10- Que descoberta você acha que a narradora fez que a deixou tão chocada?
11- O que a narradora quer dizer com: “ a vida é bonita”, o que é bonito?
12- Qual o foco narrativo utilizado no texto? E que tipo de narrador?
13- Foi utilizado o discurso direto? Justifique sua resposta.
14- Há no texto uma comparação. Retire-a.
15- Explique a colocação pronominal em: "Enfeitar-me aos onze anos de idade...", "Eu me sentia pronta...".

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